segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Do Amor Humano

Parte do cap. XIX do livro "WE - A Chave da Psicologia do Amor Romântico", de Robert A. Johnson, 1987, Ed. Mercuryo, baseado em princípios jungianos de psicologia e interpretação do mito "Tristão e Isolda".

As pessoas ficam tão exauridas com os ciclos e os becos sem saída do romance, que começam a se perguntar se realmente existe uma coisa chamada “amor”.

Existe, mas algumas vezes precisamos promover profundas mudanças de atitudes antes de podermos descobrir o que é o amor e assim abrir um espaço para ele em nossa vida. [...]
Por ser amor um arquétipo, ele apresenta sua própria individualidade, suas peculiaridades, sua “personalidade”. Como um deus, o amor se comporta como uma “pessoa” no inconsciente, um ser independente na psique. Amor é distinto do meu ego; ele já estava no mundo antes do meu ego chegar, e quando este se for, o amor continuará aqui. Ainda assim, o amor é “alguma coisa” ou “alguém” que habita dentro de cada um. É uma força que atua do interior para o exterior, que permite ao ego enxergar além de si mesmo, e com isso ver os outros seres humanos como algo que deve ser valorizado, estimado, e não usado.

Quando eu digo que “amo”, não sou eu quem ama; na realidade, é o Amor que age através de mim. [...] Uma identificação que simplesmente flui de dentro para fora, independente das minhas intenções ou de meu esforço.

O amor realiza melhor sua alquimia – mais do que podemos imaginar – quando seguimos o conselho de Cordélia, no Rei Lear, de Shakespeare: “Ama e permanece em silencio”.
O amor existe independentemente de nossas opiniões sobre como ele deveria ser. Apesar das mentiras e do egoísmo que tentamos justificar em nome do “amor”, ainda assim ele mantém imutáveis suas características. Sua existência e sua natureza não dependem da nossa ilusão, de nossas opiniões ou de nossas fraudes.

O amor não é o que a sociedade nos leva a esperar, não é aquilo que nosso ego deseja, não é o palavreado piegas nem os êxtases exagerados que nos acostumamos a esperar dele. Acontece que o amor é, ele é aquilo que “eu sou”, e não o ego que eu gostaria que ele fosse.
É necessário que saibamos tudo isso a respeito do amor, caso contrário jamais agüentaríamos encarar honestamente nossos auto-enganos. O ego sabe somente defender-se a si mesmo e aos seus desejos, mas o amor “não procura seus próprios interesses... tudo espera, tudo crê, tudo suporta”.

O amor humano está tão distorcido pelos excessos e pelas perturbações do romance, que quase nunca procuramos o amor pelo amor. À medida que passamos a entender suas características e sua forma de agir, começamos por divisá-lo por dentro de nós – manifestado nos sentimentos, na vibração espontânea de calor humano com relação às pessoas, nos pequenos gestos de afeição que nos passam desapercebidos, e que tecem o fio secreto de nossa vida de todos os dias.

O amor é o poder que dentro de nós aceita e valoriza o outro ser humano tal como ele é, que aceita a pessoa que ali está, verdadeiramente, e não transforma no ser idealizado pela nossa projeção. O amor é o deus interior que abre nossos olhos cegos para a beleza, o valor e as qualidades da outra pessoa. O amor nos faz respeitar a pessoa como um todo, [...] o que significa que tanto aceitamos o lado negativo quanto o positivo, tanto as imperfeições quanto as qualidades admiráveis. Quando alguém realmente ama um ser humano – e não uma projeção – ele ama a sombra assim como ama todo o resto. Ele aceita a totalidade do outro.

O amor humano permite ao homem ver o valor intrínseco da mulher, e por isso mesmo o amor o leva a honrá-la e servi-la, ao invés de usá-la para os interesses de seu ego. [...]
O amor altera nosso senso de importância. Torna-se tão importante para nós que um ser se complete, que viva plenamente, que encontre alegria na vida, quanto nos é importante suprir nossas próprias necessidades.

No mundo do inconsciente, o amor é uma das grandes forças psicológicas que tem o poder de transformar o ego, de despertá-lo para a existência de algo fora dele mesmo, fora de seus planos, de seu império, fora de sua habitual segurança. [...]

O amor é, por sua própria natureza, o oposto ao egocentrismo.

Quando, porém, nos preocupamos com as “necessidades” criadas por nós, com nossos desejos, sonhos, com o poder que exercemos sobre as pessoas, isto não é amor. O amor é algo totalmente distinto dos desejos do ego e de seus jogos de poder. Ele leva à outra direção, ou seja, a direção à bondade, ao respeito, às necessidades das pessoas que nos cercam. [...]
Por isso criticamos o amor romântico, e esta é a principal distinção entre o amor humano e o amor romântico: o romance, pela sua própria natureza, está fadado a degenerar para o egoísmo, pois ele não é um amor dirigido à outro ser humano.

A paixão do romance é sempre dirigida às nossas projeções, às nossas expectativas, às nossas fantasias. Na verdade, não é o amor que se sente por uma pessoa, mas o que sentimos por nós mesmos. [...]

[...] “Ser capaz de um verdadeiro amor significa amadurecer, ter atitudes realísticas para com o outro. Significa aceitar a responsabilidade pela nossa felicidade ou infelicidade; e não esperar que o outro nos faça feliz, nem culpá-lo por nosso mau humor ou por nossas frustrações”.
(Sanford, Invisible Partners, p. 19-20)

O erro do amor romântico não está no fato de amarmos a nós mesmos, mas no fato de nos amarmos de forma errada. Tentando reverenciar o inconsciente por meio das projeções românticas que colocamos nas pessoas, deixamos de perceber a realidade que existe nessas projeções: não percebemos que estamos buscando nosso self.
A tarefa de resgatar o amor dos pântanos do romance começa com uma mudança de visão em relação ao mundo interior. [...]

Disse Jung certa vez que sentimento é uma questão de âmbito pequeno, e no amor humano podemos ver que isso é verdade. A ligação real entre duas pessoas é vivida nas pequenas coisas que fazem juntas: a conversa calma que mantêm quanto termina a faina diária, a palavra meiga de compreensão, o companheirismo de todo dia, aquele encorajamento nos momentos difíceis, um pequeno presente nos momentos em que menos se espera, os gestos espontâneos de amor.
Quando um casal está verdadeiramente ligado pelos laços da afeição, os dois estão dispostos a abraçar o espectro total da vida humana. Conseguem transformar até mesmo coisas maçantes, coisas difíceis ou prosaicas, em aspectos alegres e gratificantes da vida. Por outro lado, o amor romântico só pode durar enquanto ambos estiverem “altos”, enquanto houver dinheiro e os lazeres forem emocionantes.

O amor se alegra em fazer coisas que aborrecem o ego, está disposto a trabalhar com os variados humores de uma pessoa e com seus momentos de irracionalidade. O amor está pronto para preparar o desjejum e fazer o balanço da conta bancária. O amor está ansioso por fazer essas coisas da vida, porque há ternura e não projeção.
O amor humano faz com que o homem queira ver a mulher como um ser completo e independente, encorajando-a ser ela mesma. O amor romântico apenas reforça aquilo que ele gostaria que ela fosse. [...]

O romance nunca está satisfeito e feliz com o outro, tal qual é.

Necessariamente, dentro do amor humano está a amizade: a amizade no relacionamento, no casamento, a amizade entre marido e mulher. Quando um homem e uma mulher são verdadeiramente amigos eles conhecem os pontos difíceis e as fraquezas do outro, mas não cedem a tentação de criticá-los. Estão mais interessados na ajuda mútua e no prazer que sentem na companhia um do outro, do que em descobrir defeitos. [...]

Os amigos apóiam-se em tempos difíceis, ajudam-se nas tarefas comuns da vida. Eles não impõem padrões impossíveis um ao outro, não exigem perfeição e preferem ajudar-se mutuamente, a se desgastarem com exigências e imposições.
No amor romântico há ausência de amizade. Romance e amizade são forças totalmente opostas, são inimigos naturais com propósitos totalmente opostos. Às vezes as pessoas dizem: “não quero ser amigo (amiga) da minha esposa (esposo); isso acabaria de vez com o romance no nosso casamento”. E é verdade, a amizade acaba com o teatro e com as emoções artificiais de um relacionamento, mas também acaba com o egocentrismo e com a improdutividade, e substitui o drama por algo humano e real.

Se um homem e uma mulher são amigos, então são tanto “o próximo” um do outro, como também amantes, e seu relacionamento se enquadra numa frase de Cristo: “Ama o teu próximo como a ti mesmo”. Uma das contradições mais notórias do amor romântico é que muitos casais tratam seus amigos com muito mais bondade, consideração, generosidade – e até capacidade de perdoar – do jeito que jamais o fizeram um com relação ao outro. Quando as pessoas estão com seus amigos, elas são agradáveis, atenciosas e corteses, mas, quando chegam em casa, muitas vezes dão vazão à raiva, aos ressentimentos, aos humores e às frustrações. Estranhamente, eles tratam melhor a seus amigos.
As pessoas não podem exigir que seus amigos carreguem todas as suas projeções, que sejam bodes expiatórios para seus humores, que as mantenham sempre felizes e que tornem a vida plena para eles.

Por que os casais exigem tudo isso um do outro? Porque o culto do romance nos ensina que temos o pleno direito de esperar que todas as nossas projeções sejam carregadas pela pessoa por quem estamos apaixonados, e ainda que ela satisfaça todos os nossos desejos, e que faça com que todas as fantasias se realizem. Em um dos ritos hindus do casamento, o noivo e a noiva juram solenemente: “Você será o meu melhor amigo”. Os casais ocidentais têm de aprender e serem amigos, a viver juntos no espírito da amizade, a ter como guia a virtude da amizade para sair do emaranhado que fizemos do amor.
Os hindus não tentam fazer do casamento nem do relacionamento um substitutivo pra a comunhão com a alma. Encontram seus deuses no templo, algumas vezes, na meditação ou, no guru; não tentam fazer com que os relacionamentos exteriores desempenham o papel dos interiores.

Existe um amor tranqüilo, constante, nos casamentos hindus; existe afeto profundo e estabilidade, eles não se envolvem nas violentas oscilações entre o “apaixonar-se” e o “desapaixonar-se”, entre a adoração e a decepção, a que os casais ocidentais estão acostumados.
No casamento tradicional hindu, o compromisso que o marido assume com relação à esposa [...] é baseado no amor que sente por ela, não no estar apaixonado por um ideal que projeta nela. Seu relacionamento não vai desmoronar só porque um dia ele se “desapaixona”, ou encontra outra mulher que capte melhor suas projeções. Ele tem um compromisso com uma esposa e uma família, não com uma projeção.

Gostamos de pensar que somos mais sofisticados que os “simples” hindus, mas, em comparação com eles, a média dos ocidentais é como um touro com um aro no focinho, sempre indo atrás de sua projeção, passando de uma mulher para outra, sem construir qualquer relacionamento verdadeiro ou qualquer compromisso com uma delas. Na área dos sentimentos humanos – amor, relacionamentos – os hindus desenvolvem uma consciência altamente diferenciada, sutil, refinada. Nesses assuntos, sabem agir melhor do que nós.

Uma das coisas mais impressionantes e surpreendentes que pude observar entre hindus tradicionais foi a vivacidade, a felicidade e a saúde psicológica de suas crianças, que não são neuróticas; elas não são atormentadas no íntimo, como tantas crianças ocidentais.
Estão constantemente envoltas em calor humano e sentem a vibração de paz e afeição entre seus pais. Elas sentem a estabilidade, o caráter permanente de sua família. Seus pais têm um compromisso para sempre; elas não os ouvem se seu casamento “vai dar certo”; separação e divórcio não pairam no ar como espectros.

Para nós, ocidentais, não há como voltar atrás no tempo. Não podemos seguir a forma de ser dos hindus, não podemos resolver nosso dilema ocidental pela imitação dos costumes ou condutas de outros povos. Não podemos fazer de conta que nossa psique é oriental, quando ela é ocidental. Temos que lidar tanto com nosso inconsciente ocidental quanto com nossas feridas ocidentais; temos de encontrar o bálsamo cicatrizante dentro de nossa alma ocidental. Bebemos da poção do amor e mergulhamos na era romântica de nossa evolução, e a única saída é o caminho que nos leva para frente.

Não podemos voltar e não devemos parar.

Mas podemos, sim, aprender com os orientais a sair de dentro de nós mesmos, de dentro de nossas presunções e nossas crenças, o tempo necessário para nos vermos em uma nova perspectiva. Podemos aprender, sim, como nos aproximar do amor com novas atitudes, sem o pesado fardo dos dogmas de nossa civilização.

Podemos aprender que relacionamento humano é inseparável de amizade e do compromisso. Podemos aprender que a essência do amor não é usar o outro para a nossa felicidade, mas sim servir e encorajar aquele a quem amamos; e finalmente, poderemos descobrir – para nossa surpresa – que o que mais necessitamos não é tanto sermos amados, mas sim amar.